A casa


chegar a uma semelhança com a minha infância num presente tão revelador do que os tempos futuros me trarão não podia ter sido melhor fortúnio. num paralelo há o quente que queima a pele e dificulta o respirar. no ar o cheiro das flores do campo. a dança e zumbido das abelhas. o limoeiro lotado. o tanque de lavar já de cor moderna. uma horta onde se denota o cuidado que vem do coração. há a sopa que sabe a legumes de verdade e o pão que faz o meu filho perguntar que cheiro tem. e uma casa de pé alto com um chão de tijoleira desenhada de encantar. aqui em tudo prevalecem pormenores de vidas e de pessoas-vida. espelhos com pendores. ora rebuscados ora não numa mistura de décadas. há o móvel do farmacêutico que arrecada frascos escritos em latim. o toucador digno da menina. a calçadeira comprida do senhor. a senhorinha elegante e preciosa dela. um guarda jóias que não consigo abrir. há escrivaninhas onde imagino ter sido lacrado correio para longe. há um mata moscas como ja tinha esquecido existir. uma lareira que quase posso dizer que canta. ao lado da sala uma cozinha fria e quente ao mesmo tempo com uma chaminé que faz o fim perder de vista. há chávenas de loiça fina para beber o chá. móveis iguais aos da minha avó. um lavatório de antigamente que esconde e ofusca uma máquina de lavar de agora. há uma mistura estonteante entre utensílios que começaram por ser deles com as respectivas evoluções. não se ouve nada para além de todos os sons da natureza. fecho os olhos e lá estão eles. e eu. e a criança que fui. só que numa outra casa. numa outra vila. consigo descansar. mesmo. estava a precisar. vim com o peito pesado. já me sinto melhor. em um outro paralelo as crianças brincam. não há telemóveis e não porque tenham sido banidos por mim mas porque os próprios o fizeram. não sentem necessidade e dou graças por isso. há uma piscina tentadora perto do limoeiro alvo das partidas do sol e da chuva. uma sala com matraquilhos e pingue pongue e snooker. há espaço para futebol e voley. uma barragem com águas de história e castelos para explorar. há tempo a menos para o tudo que planeiam fazer. é tão bom fazer planos e sonhar. após cada investida adormecem no carro. à noite agradecem-nos o dia e contam do que gostaram mais. vieram com livros onde se resguardam quando o cansaço aperta e eu sorrio porque sei que não há nada como o conforto de uma boa escrita. há chão e terra para se sujarem. e não há máscaras nem carros a estorvar
. na rua acham invulgar a simpatia de qualquer vivalma que nos cumprimente e já fizeram amizade na associação desportiva. com a d.manuela. uma espécie de avó faz sopas que são as melhores que já provaram. estou sentada numa poltrona de veludo castanho. podia jurar já a ter usado. aqui perto as gargalhadas deles. a cada dia mais companheiros e amigos. para quê catalogar tudo? os raios de sol empurram as nuvem para ver quem leva a melhor enquanto leio o meu livro. ele brinca com eles e de vez em quando espreita para saber se estou bem. mais tarde vai aparecer de sorriso rasgado com mais lenha numa mão. uma garrafa de vinho e uma embalagem de sumo na outra. então brindaremos ao que estamos a construir. já não sinto o peito pesado aqui onde alguém me trouxe com um binóculo para o passado e um espelho para o amanhã.

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